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Quando Iolanda Huzak era pequena não sonhava em ser fotógrafa. Em verdade, sua maior vontade era terminar logo de arrumar a casa, lavar a louça, tirar água do poço e fazer a barra dos vestidos que a mãe vendia nos fins de semana, para então, se sobrasse um tempinho, poder brincar com as colegas de sua idade, também sobrecarregadas de tarefas. Começou a fotografar aos 22 anos, registrando a memória e história da MPB, mas, a partir da década de 1980, descobriu a importância de registrar a dignidade do ser humano e preferiu narrar histórias de pessoas por meio das imagens, retratando temas como trabalho, mulher e, certamente influenciada pela própria história, exploração infantil. "Nos meus trabalhos pessoais, aprofundo temas que envolvem a relação do homem com a sua história, com sua cultura", define-se. Iolanda sabe muito bem que uma fotografia não muda o mundo, mas contribui para que isso ocorra, e  partir da reflexão dos que admiram seu trabalho, espera atingir a consciência social a respeito de temas da maior importância.
 

Simonetta Persichetti

em Iolanda Huzak, Coleção Senac de Fotografia 

Num país onde o jornalismo é cada vez mais nocivo ao povo brasileiro, o belíssimo trabalho de Iolanda Huzak faz o inverso: coloca a fotografia a serviço da dignidade humana. Suas fotos sempre estiveram ao lado do Bem. É um orgulho ser colega e admirador de seu trabalho.

Iolanda começou a carreira em 1972, registrando espetáculos de teatro e música popular brasileira. Mas é documentando os temas "mulher", "trabalho" e "infância" que reside toda a sua força. Aí a fotógrafa e a mulher Iolanda comungam arte, paixão e luta por uma vida mais digna para as minorias e para as populações mais pobres. Projetos que colocam a fotografia a serviço do ser humano compõem  a grande trajetória de Iolanda.

O que adoro em sua fotografia é a intimidade que tantas vezes ela consegue manter com o fotografado, de forma a transportar o espectador até a cena. Quando olho uma foto sua, sinto vontade de me integrar ao ambiente ou ao objeto fotografado. Fico desejando, por exemplo, deitar ao lado dos garotos no pier de madeira pra olhar o rio Igarapé-Miri. Ou tirar as ferramentas dos meninos trabalhando e abraçá-los, ir jogar bola com eles e me envolver ainda mais no combate ao trabalho infantil. Quero entrar na foto e no orgulho quilombola, e pedir a Deus um olhar e um coração mais feminino para o meu trabalho e para esse mundo.

Obrigado, Iolanda, pela sua fotografia.

 

João Roberto Ripper

para a exposição Olhos de Ver, Olhos de Reparar,

2007, MIS, São Paulo

Iolanda Huzak começou a fotografar em 1972, preocupada com a memória e a história da música popular brasileira, mas foi só na década de 1980, depois de fotografar um projeto de teatro na Penitenciária Feminina de São Paulo, que percebeu a importância de registrar a dignidade do ser humano e decidiu narrar essas histórias por meio das imagens. Foi dessa experiência que nasceu a fotógrafa humanista sempre em busca de projetos sociais, retratando temas como trabalho, mulher e exploração infantil.

Sua escolha não se deu apenas pela emoção momentânea de uma época conturbada, difícil e pesada - estávamos vivendo na ditadura militar -, mas por trazer à tona seu repertório, seu passado de criança na Vila Anastácio, um bairro paulistano pobre e industrial, “nas franjas do rio Tietê”, como ela mesma define. Num texto, escrito em 1999, para a revista Caros Amigos (acompanhado por um ensaio fotográfico sobre meninas trabalhadoras domésticas), lembra: “Por volta dos 10 anos eu já tinha obrigações, como a maioria das meninas da minha rua. No final da tarde, alguma brincadeira era permitida, até que a mãe de lá dentro chamasse para 'barrer' a casa, lavar louça, tirar água do poço e, à noite, fazer a barra dos vestidos que ela costurava e que, aos sábados, íamos vender fiado em bairros mais distantes e para outra gente de pobreza maior”. Talvez por isso o trabalho infantil a toque de forma tão especial, assim como a condição da mulher.

Iolanda não pôde estudar, só tendo cursado até a 4a série do ensino fundamental. Aos 17 anos, retornou aos estudos para terminar a quinta série. O ano era 1964 e ela, alienada em relação a tudo o que acontecia. Com o tempo passou a se engajar, a participar dos movimentos estudantis, muito atuantes na escola pública, e então a se formar ideologicamente. Aos 20, tornou-se secretária de uma empresa de engenharia.

 

O destino quis que conhecesse alguns jornalistas da revista Realidade: “Como é sabido, ela sa revista] foi um acontecimento histórico no jornalismo brasileiro. Eu conversava com os jornalistas que me contavam sobre a situação do país. Ler a revista e conversar com eles começou a gestar em mim a idéia de trocar de profissão: tornar-me fotógrafa”.

Fotojornalista, fotodocumentarista, foto-humanista - todos são nomes ou etiquetas para Iolanda: “Acho que sou um pouco de tudo, depende do momento. Quando trabalho para a imprensa, claro que sou repórter fotográfica; nos meus trabalhos pessoais, me vejo mais como humanista, aprofundo temas que envolvem a relação do homem com sua história, com sua cultura e sua relação com o mundo”, conta.

E são essas relações que ela conta em seus ensaios. Iolanda sabe muito bem que uma fotografia não muda o mundo, mas contribui para que isso ocorra. “Acredito no poder da imagem, porque ela é uma comunicação direta que atinge todas as camadas sociais, independentemente do homem ser letrado ou não.

 

Os ensaios fotográficos de Iolanda Huzak remetem aos primeiros trabalhos de fotografia social ou documentária realizados no início do século XX, em especial pelo fotógrafo norteamericano Lewis Hine, um sociólogo que em 1907, a convite do National Child Labor Committee (Comitê Nacional contra o Trabalho Infantil), percorreu 27 estados norte-americanos e documentou as mais cruéis situações de exploração infantil. Suas fotos causaram forte impacto na sociedade norte-americana, que, sensibilizada, começou a pressionar o Congresso para aprovar uma lei de proteção ao trabalho infantil. Isso acabou acontecendo em 1916, dez anos depois das primeiras imagens de Hine sobre o assunto. É dessa maneira também que Iolanda percebe a fotografia, como um vetor de discussão.

Para citar um exemplo, seu livro Crianças de Fibra, em co-autoria com a jornalista Jô Azevedo, que denuncia a existência de trabalho infantil em seis estados brasileiros, foi feito em parceria com a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), marcando o início das ações do Programa Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec), realizado pela OIT no Brasil.

No início da sua carreira, fotógrafos como Bruce Davidson e Josef Koudelka a inspiraram com suas imagens que causam impacto visual e estético sem, no entanto, abrir mão da dignidade que cada ser humano merece.

Mas sua fonte permanente de inspiração sempre foi o fotógrafo carioca João Roberto Ripper: "Tem sido referência constante em minha vida, não somente pelo talento, mas por seu caráter, sua generosidade e envolvimento com os temas sociais brasileiros, sempre tratados com muita ética".

E ética é também o que permeia suas fotografias, sua maneira de registrar, de tratar de problemas sociais, sem cair na retórica ou na propaganda fácil de um discurso vazio. Além da informação, ela percebe algo maior dentro da fotografia e do tipo de fotografia que faz e divulga: o papel de educar. “A imagem tem o poder de transmitir informação. Por representar modos de cultura, evocar a memória, contar histórias... Contém recortes da realidade que aproximam o ser humano dele mesmo, pois permite comparação e apreensão da realidade."

Entre 1979 e 1983, desenvolveu um trabalho na região de Ribeirão Preto com os trabalhadores rurais no corte da cana-de-açúcar. O projeto consistia em produzir audiovisuais para e com os trabalhadores. “A equipe era composta por três sociólogos e eu, como fotógrafa. Foi uma experiência marcante porque era preciso estabelecer um diálogo com o trabalhador, conhecer sua história de vida. Ele deixaria de ser apenas braços para o trabalho e passaria a ter voz e sua identidade reconhecida."

Essa sua maneira de entender fotografia e, portanto, de fotografar a levou a desenvolver um belo projeto, a convite da Unicef, em países da América Latina. Ela ainda engatinhava em seu trabalho como fotógrafa.

Em 1988, foi pela primeira vez a El Salvador. “Mal conhecia o Brasil, mas conhecer países da América Central foi uma forma de me inteirar da realidade de locais periféricos, o quintal do mundo, como eram chamados os países em desenvolvimento." O representante da Unicef na América Central - que completara seu mestrado na região de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, sobre a situação dos bóias-frias que trabalhavam nos canaviais – conheceu o seu trabalho e convidou-a para realizar uma documentação em El Salvador.

No ano seguinte, 1989, retornou a El Salvador e, em seguida, visitou Costa Rica, Honduras e Guatemala. “A idéia era deixar uma exposição montada sobre mulheres e crianças em situação de risco social, a fim de mobilizar doadores e conseguir mais recurso para as ações da Unicef naqueles países."

Desde então, é nessa vertente que ela trabalha. Cada vez mais se tornando uma fotógrafa de ensaios e documentarista, continuando a dar nome, rosto e voz para situações que insistimos em esquecer. Muito se deve também à maneira como esses assuntos são tratados pela grande imprensa. “O fotojornalismo está muito mal. Não existem mais espaços para grandes reportagens. As empresas deixaram de investir recursos para produção de matérias de grande fôlego. Tudo é resolvido pelo telefone. Percebo, porém, que existe um movimento tímido, mas consistente, da retomada do jornalismo investigativo, como no caso das revistas Caros Amigos, Brasileiros e Piauí, citando apenas as que conheço."

Hoje, Iolanda Huzak, formada em filosofia e prestes a pensar num mestrado, continua em sua estrada de fotodocumentário. Na aparência, ela é miúda, delicada, sempre com um sorriso nos lábios. Com essa mesma gentileza, faz suas imagens, que, porém, se apresentam aos nossos olhos de forma bastante contundente e precisa. Seus cortes e sua composição não deixam dúvidas de para onde devemos olhar. Ela não disfarça; ela mostra, ela aponta.

"Registro o passado com as lentes no presente." Um presente que ela vê muito diferente de seu passado. E completa: "Hoje a miséria substitui a pobreza. Nas casas, o trabalho da menina começa antes mesmo dos 10 anos. Ela já não brinca mais na rua. Cuida dos irmãos enquanto a mãe vai para o trabalho. Não há creche e não há quem olhe por eles. É ela agora quem cuida de tudo dentro da casa e ainda arrisca ganhar uns trocados fazendo 'servicinhos' na vizinhança nas horas vagas. São milhares de meninas espalhadas pelo Brasil com responsabilidade de gente grande. Era uma vez a escola, era uma vez um sonho.... Era uma vez um quintal... A infância escorre lenta pelo ralo."

Simonetta Persichetti

em Iolanda Huzak, Coleção Senac de Fotografia 

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